A Reforma Tributária promete simplificar o sistema, mas, como toda grande mudança, traz consigo uma série de nuances e pontos de interpretação que geram dúvidas e discussões acaloradas entre especialistas. Recentemente, em uma conversa com meu colega Matheus Carvalho Pacheco, surgiu uma questão de particular relevância e complexidade: empréstimos onerosos concedidos por contribuintes que não estão no regime específico de serviços financeiros estarão sujeitos à incidência de IBS e CBS?
Este é um daqueles temas que expõem as tensões entre a generalidade da lei e a necessidade de clareza nas operações financeiras, que muitas vezes já são reguladas por outros impostos.
Os Dois Lados da Moeda: Artigos em Tensão
A incerteza sobre a incidência de IBS e CBS sobre mútuos onerosos entre empresas não financeiras reside na aparente contradição ou, no mínimo, na necessidade de uma interpretação harmonizada de dois artigos da Lei Complementar nº 214, que institui o Imposto sobre Bens e Serviços (IBS) e a Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS):
Artigo 4º, § 2º, Inciso IV: A Abrangência do Mútuo Oneroso
De um lado, o Art. 4º, § 2º, IV da LC 214 é bastante direto ao prever que o mútuo oneroso configura operação onerosa com bens ou serviços. Ora, se a regra geral da Reforma Tributária é a incidência do IBS e CBS sobre operações onerosas com bens ou serviços, a menção expressa ao mútuo oneroso parece, em tese, atrair a incidência dos novos tributos sobre essas operações.
Essa disposição sugere que o legislador teve a intenção de abranger uma gama ampla de transações que geram receita, incluindo aquelas de natureza financeira que configuram uma “prestação” de capital em troca de remuneração.
Artigo 6º, Inciso V: A Não Incidência Sobre Rendimentos Financeiros
De outro lado, temos o Art. 6º, V, que estabelece uma regra de não incidência sobre rendimentos financeiros, salvo quando incluídos na base de cálculo pelo regime específico de instituições financeiras. A redação é crucial:
- Não incidência sobre rendimentos financeiros.
- EXCEÇÃO: A incidência ocorre apenas quando tais rendimentos são incluídos na base de cálculo pelo regime específico de instituições financeiras.
Isso significa que, se o contribuinte que concede o empréstimo oneroso não for uma instituição financeira sujeita a esse regime específico (que, a rigor, ainda será detalhado em lei complementar), os rendimentos financeiros decorrentes do mútuo oneroso estariam, por esta regra, fora do alcance da CBS e do IBS.
O Dilema da Incidência e a Base de Cálculo
Diante dessa aparente dicotomia, a pergunta central persiste: há incidência de IBS e CBS nesses casos? Se sim, o que poderia ser considerado base de cálculo?
O principal emprestado, ou seja, o valor do capital concedido em mútuo, obviamente, não representa uma contraprestação por um “serviço” ou “bem” no sentido comum, e não deve ser tributado como tal. Seria o valor do principal que retorna à empresa.
A questão, então, se concentra nos juros e outras remunerações (como encargos, tarifas) decorrentes do mútuo. No entanto, esses juros, por sua vez, parecem estar explicitamente protegidos pela regra de não incidência do Art. 6º, V, desde que o mutuante não seja uma instituição financeira sob regime específico.
Minha Impressão: A Não Incidência Prevalece (Fora do Regime Específico)
Minha impressão inicial, e que se alinha com a interpretação de muitos especialistas, é de que, fora do regime específico de serviços financeiros, não haverá base legal para a tributação de operações de empréstimos onerosos feitos por contribuintes que não são instituições financeiras.
A razão para isso é que o Art. 6º, V, é uma norma específica de não incidência para rendimentos financeiros, e as regras de não incidência geralmente prevalecem sobre as de incidência genérica, exceto quando há uma exceção clara. A exceção expressa no próprio artigo é a inclusão na base de cálculo pelo regime específico das instituições financeiras. Se o contribuinte não se enquadra nessa exceção, a não incidência deveria ser o padrão.
No entanto, a menção expressa ao mútuo oneroso no Art. 4º é um ponto que exige atenção. Essa menção poderia ser interpretada como uma forma de deixar claro que o mútuo, em geral, pode configurar uma operação onerosa com bens ou serviços para fins de incidência do IVA dual, mas que a regra de não incidência para rendimentos financeiros (Art. 6º, V) atua como uma restrição específica para o caso de mutuantes não financeiros.
A harmonização desses dispositivos dependerá da regulamentação futura e, provavelmente, da interpretação da Receita Federal e dos tribunais. A preocupação é que uma interpretação excessivamente ampla do Art. 4º, IV, sem o devido peso ao Art. 6º, V, poderia levar à tributação de rendimentos financeiros de empresas que não têm essa atividade como principal, gerando uma carga tributária inesperada e distorções.
O Que Você Acha? O Debate Está Aberto
Este é um tema crucial que necessitará de clareza nas futuras leis complementares e instruções normativas. A ambiguidade pode gerar insegurança jurídica e contencioso.
Na sua opinião:
- Há incidência de IBS e CBS sobre empréstimos onerosos feitos por empresas não financeiras?
- Se sim, qual seria a base de cálculo?
O debate está aberto, e a troca de ideias é fundamental para que, juntos, possamos navegar pelas complexidades da Reforma Tributária.