O Capítulo III da Lei Complementar que institui o Imposto sobre Bens e Serviços (IBS) e a Contribuição Social sobre Bens e Serviços (CBS) é o grande manual de instruções de como esses novos tributos funcionarão na prática. Desde a governança conjunta até os detalhes da importação e exportação, este capítulo desvenda a complexa teia operacional que sustentará a reforma tributária brasileira.
Seção I – Disposições Gerais: A Governança Compartilhada
O Art. 58 estabelece o pilar da administração do IBS e da CBS: a atuação conjunta do Comitê Gestor do IBS e da Receita Federal do Brasil (RFB). Essa parceria é crucial para garantir a harmonização e a eficiência na gestão de tributos de competência compartilhada (IBS) e federal (CBS).
A espinha dorsal dessa operacionalização será uma plataforma eletrônica unificada, com gestão compartilhada entre o Comitê Gestor e a RFB, onde o contribuinte acessará todas as informações de apuração e pagamento. Essa plataforma também servirá como um canal de atendimento para resolver problemas operacionais, prometendo simplificar a vida do contribuinte em comparação com a miríade de sistemas atuais. Contudo, a Lei Complementar resguarda a possibilidade de ambos os órgãos manterem seus próprios sistemas, o que pode trazer desafios de integração no futuro, se não houver um alinhamento perfeito.
Seção II – Do Cadastro com Identificação Única: A Base para o Novo Sistema
A base para a identificação dos contribuintes e a gestão dos novos tributos é o cadastro com identificação única, conforme o Art. 59. Isso é um grande avanço na simplificação, pois atualmente a multiplicidade de inscrições estaduais e municipais gera grande burocracia.
Para pessoas físicas, o Cadastro de Pessoas Físicas (CPF) será o identificador. Para pessoas jurídicas e entidades sem personalidade jurídica, o Cadastro Nacional da Pessoa Jurídica (CNPJ). Para imóveis rurais e urbanos, o Cadastro Imobiliário Brasileiro (CIB).
A integração, sincronização e compartilhamento obrigatório e tempestivo dessas informações cadastrais entre as administrações tributárias federal, estaduais, distrital e municipais é um ponto chave. Essa interoperabilidade, gerida pelo Comitê para Gestão da Rede Nacional para Simplificação do Registro e da Legalização de Empresas e Negócios (CGSIM), promete reduzir a redundância de dados e otimizar a fiscalização.
Além disso, o Domicílio Tributário Eletrônico (DTE) será unificado e obrigatório para todas as pessoas jurídicas sujeitas ao CNPJ, concentrando as comunicações fiscais em um único ponto, o que é um alívio para as empresas.
Seção III – Do Documento Fiscal Eletrônico: A Espinha Dorsal da Tributação
O Art. 60 estabelece a obrigatoriedade da emissão de documento fiscal eletrônico para todas as operações com bens ou serviços, incluindo exportações e importações. Essa medida é fundamental para o controle e a arrecadação dos novos tributos, e a uniformização promete reduzir a complexidade gerada pela diversidade de notas fiscais existentes hoje.
A informação prestada no documento fiscal eletrônico tem caráter declaratório e constitui confissão do valor devido, conferindo grande peso jurídico ao documento. A obrigatoriedade de emissão se estende até mesmo a operações imunes, isentas, com alíquota zero ou suspensão, além de transferências de bens entre estabelecimentos do mesmo contribuinte, garantindo o rastreamento completo das operações.
Os entes federativos deverão compartilhar esses documentos fiscais eletrônicos no momento da autorização ou recepção, utilizando padrões técnicos uniformes. Isso é crucial para a efetividade do modelo de destino do IBS e para a partilha da arrecadação.
Seção IV – Dos Programas de Incentivo à Cidadania Fiscal
O Art. 61 abre espaço para a criação de programas de incentivo à cidadania fiscal pelo Comitê Gestor do IBS e pela RFB. A ideia é estimular os consumidores a exigirem a emissão de documentos fiscais, prática que comprovadamente auxilia no combate à sonegação. Esses programas poderão ser financiados por até 0,05% da arrecadação do IBS e da CBS, demonstrando a importância dada à participação do cidadão na fiscalização.
Seção V – Disposições Transitórias: A Transição para o Novo Modelo
O Art. 62 impõe a União, Estados, Distrito Federal e Municípios a obrigação de adaptar seus sistemas e aplicativos de emissão de documentos fiscais eletrônicos para o leiaute padronizado do IBS e da CBS. Além disso, devem compartilhar esses documentos com o ambiente nacional de uso comum do Comitê Gestor do IBS e das administrações tributárias.
Em um passo importante para os Municípios e o Distrito Federal, a partir de 1º de janeiro de 2026, eles serão obrigados a autorizar seus contribuintes a emitir a Nota Fiscal de Serviços Eletrônica de padrão nacional (NFS-e) ou compartilhar os documentos gerados em seus próprios emissores para o ambiente de dados nacional da NFS-e. Essa medida, válida até 31 de dezembro de 2032, é um marco na unificação da tributação sobre serviços.
O não cumprimento dessas adaptações e compartilhamentos implicará a suspensão temporária das transferências voluntárias, uma poderosa ferramenta para garantir a adesão dos entes federativos.
CAPÍTULO IV – DO IBS E DA CBS SOBRE IMPORTAÇÕES
A reforma também aborda a tributação sobre as importações, garantindo a neutralidade e a não cumulatividade.
Seção I – Das Hipóteses de Incidência
O Art. 63 é categórico: o IBS e a CBS incidem sobre a importação de bens ou serviços do exterior, independentemente de quem a realiza (pessoa física, jurídica ou entidade sem personalidade jurídica) ou da finalidade. Isso reforça o princípio de que o consumo, seja ele de bens ou serviços, deve ser tributado no destino.
Seção II – Da Importação de Bens Imateriais e Serviços
O Art. 64 detalha a incidência sobre bens imateriais (como softwares, licenças, direitos) e serviços importados. A regra geral é que se considera importação quando o consumo ocorre no País, mesmo que o fornecimento seja feito do exterior. A lei especifica o que se entende por consumo (utilização, exploração, aproveitamento, fruição ou acesso) e as situações em que a prestação de serviço por residente no exterior é considerada importação (executada no País, relacionada a bens no País, ou bens remetidos para o exterior para serviço e retorno).
Em termos práticos, o adquirente no Brasil será o contribuinte do IBS e da CBS nessas operações, e o fornecedor estrangeiro é responsável solidário. Plataformas digitais intermediadoras dessas importações também serão responsáveis pelo pagamento.
Seção III – Da Importação de Bens Materiais
Subseção I – Do Fato Gerador (Art. 65 e 66)
O fato gerador da importação de bens materiais é a entrada de bens estrangeiros no território nacional. O Art. 66 lista as situações que não constituem fatos geradores, como o retorno de bens enviados em consignação não vendidos, bens devolvidos por defeito, erros de expedição, bens idênticos para reposição de defeituosos, bens com pena de perdimento antes da liberação aduaneira, entre outros.
Subseção II – Do Momento da Apuração (Art. 67)
O fato gerador na importação de bens materiais ocorre na liberação para consumo (desembaraço aduaneiro para uso definitivo), na liberação de bens submetidos a regime de admissão temporária para utilização econômica, ou no lançamento do crédito tributário em casos de bagagem, extravio ou falta de declaração de importação.
Subseção III – Do Local da Importação de Bens Materiais (Art. 68)
O local da importação é o local da entrega dos bens ao destinatário final, o domicílio principal do adquirente de mercadoria entrepostada, ou o local onde o extravio foi caracterizado. Essa definição é crucial para a correta distribuição do IBS entre os entes federativos.
Subseção IV – Da Base de Cálculo (Art. 69 e 70)
A base de cálculo do IBS e da CBS na importação de bens materiais é o valor aduaneiro acrescido de diversos outros impostos, taxas e contribuições incidentes até a liberação do bem. Não integram a base de cálculo o IPI, ICMS e ISS (estes dois últimos no período de transição). A conversão de moeda estrangeira é feita pela taxa de câmbio do Imposto sobre a Importação.
Subseção V – Da Alíquota (Art. 71)
As alíquotas são as mesmas incidentes sobre a aquisição do respectivo bem no País, observando o local de destino da importação para o IBS. Em casos de extravio ou consumo, e descrição genérica, as alíquotas-padrão do destino são aplicadas.
Subseção VI – Da Sujeição Passiva (Art. 72 a 75)
O contribuinte é o importador ou o adquirente de mercadoria entrepostada. Há previsão para responsáveis (transportador em caso de extravio, depositário, beneficiário de regimes aduaneiros especiais que descumprem condições) e responsáveis solidários (quem registra a declaração de importação em nome de outro, encomendante predeterminado, representante de transportador estrangeiro, entre outros).
Subseção VII – Do Pagamento (Art. 76 e 77)
O pagamento do IBS e da CBS na importação deve ser feito até a entrega dos bens submetidos a despacho para consumo, com opção de antecipação. Em alguns casos, como para operadores OEA, o regulamento poderá prever pagamento posterior. O não pagamento impede a entrega dos bens.
Subseção VIII – Da Não Cumulatividade (Art. 78)
É assegurado o direito ao crédito do IBS e da CBS efetivamente pagos na importação de bens materiais para os contribuintes sujeitos ao regime regular, seguindo as regras gerais de não cumulatividade.
CAPÍTULO V – DO IBS E DA CBS SOBRE EXPORTAÇÕES
As exportações, como na maioria dos sistemas de IVA/GST, são tratadas com imunidade.
Seção I – Disposições Gerais (Art. 79)
As exportações de bens e serviços para o exterior são imunes ao IBS e à CBS, conforme já estabelecido no Art. 8º da Lei Complementar. Crucialmente, o Art. 79 garante ao exportador a apropriação e utilização dos créditos relativos às operações em que seja adquirente de bem ou serviço, assegurando que o tributo não onere o produto brasileiro no mercado internacional.
Seção II – Das Exportações de Bens Imateriais e de Serviços (Art. 80)
Considera-se exportação de serviço ou bem imaterial o fornecimento para residente ou domiciliado no exterior e consumo no exterior. A lei elenca diversas situações consideradas exportação de serviço, incluindo aquelas relacionadas a bens imóveis no exterior, bens móveis que entram e saem do País para serviço, e uma série de serviços diretos e exclusivamente vinculados à exportação de bens materiais (como intermediação, seguro de cargas, despacho aduaneiro, transporte, armazenagem, etc.). Isso visa garantir que a cadeia logística da exportação também se beneficie da imunidade.
Seção III – Das Exportações de Bens Materiais (Art. 81 e 82)
O Art. 81 amplia a imunidade para exportações sem saída do território nacional em diversas situações específicas, como bens incorporados a bens de comprador estrangeiro que se encontra temporariamente no País, bens entregues a órgãos públicos em licitação internacional, bens para defesa nacional, empresas de loja franca, aeronaves entregues a transportadoras nacionais e bens destinados a exploração de petróleo e gás. Essa previsão é importante para garantir a competitividade da indústria nacional.
O Art. 82 trata da suspensão do pagamento do IBS e da CBS no fornecimento de bens materiais para empresas comerciais exportadoras, desde que cumpram requisitos como certificação no Programa OEA, patrimônio líquido mínimo, opção pelo DTE, escrituração contábil e regularidade fiscal. A suspensão se converte em alíquota zero após a exportação efetiva. Caso a exportação não ocorra no prazo (180 dias) ou os bens sejam redestinados, industrializados ou extraviados, a empresa exportadora se torna responsável pelo pagamento dos tributos suspensos, com multas e juros. Essa é uma medida de controle para evitar desvios de finalidade.
A operacionalização detalhada do IBS e da CBS, abordando desde a governança compartilhada e os sistemas eletrônicos até as complexidades das importações e exportações, demonstra o esforço da reforma tributária em criar um ambiente mais moderno e integrado. No entanto, a transição e a adaptação de todos os envolvidos, incluindo os entes federativos e os contribuintes, serão desafios significativos nos próximos anos.
Em sua opinião, qual dos pontos de operacionalização apresentados neste capítulo representa o maior desafio para a implementação da reforma tributária no Brasil?